terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A violência no contexto escolar

O artigo abaixo, foi escrito em parceria com a deputada Adriana Accorsi para o I Colóquio Internacional de Bullying Submerso, promovido pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, no ano de 2015. Uma reflexão sobre este sério problema que está presente no universo das escolas brasileiras.






A Violência no Contexto Escolar

Adriana Sauthier Accorsi[1]
Geralda Cunha Teixeira Ferraz
[2]


Introdução:
Levantamento feito pelo movimento Todos Pela Educação (TPE) revelou que, em 2013, o Brasil tinha 93,6% da população na faixa etária entre 4 e 17 anos cursando a Educação Básica. Esse é um indicador que aponta para o alcance do objetivo principal, a inserção de todas as crianças, adolescentes e jovens na Escola. O dado também expõe a proporção e a gravidade da violência no ambiente escolar brasileiro.
A experiência no mundo das delegacias, principalmente na que atua com a proteção da criança e do adolescente, revela a dura realidade do contexto escolar atual: a violência dentro da escola. Quais são os motivos do comportamento violento de tantos estudantes num ambiente educacional?  
Partindo do conceito de Paulo Freire, que define escola como um lugar de gente, de se criar laços, fazer amizades, de conviver, pressupõe-se que antes de ser um espaço de aprendizagem e trocas de experiências, a escola é um local onde as relações interpessoais poderiam acontecer de forma harmônica, baseada no diálogo, na comunicação e na superação de conflitos. Nesta vertente, Paulo Freire faz um convite para pensar um projeto político pedagógico centrado na construção de uma escola “séria, competente, justa,
alegre, curiosa (1991, p. 42), uma escola em que todos tenham condições de aprender e de criar, de arriscar-se, de perguntar, de crescer”




Por outro lado, a realidade tem demonstrado que a escola deixou de ser um lugar de convivência e busca de conhecimento, para ser um espaço de pouco diálogo, da intolerância e do desrespeito, marcado por atitudes de agressão de todos os modos e de todos os lados. Tais manifestações, de acordo com o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, da OMS, caracterizam-se como atos de violência (OMS, 2002).
Uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.

            Em artigo científico Rosa (2010) explica que a violência nas escolas é vista como uma questão multicausal e que demanda análises mais aprofundadas.
… justamente por sua complexidade e multiplicidade de facetas que a compreensão  do fenômeno das violências nas escolas impõe o desafio de uma ótica transdisciplinar, multidimensional e pluricausal.

            Se o objetivo central proposto hoje pelo Estado é de que todas as pessoas em idade escolar tenha acesso às escolas, é preciso estar atento a ao desafio da superação da violência no contexto escolar, o que certamente afeta sobremaneira a presença e a convivência saudável das crianças, adolescentes e jovens neste ambiente e fora dele. Não basta que todos estejam na escola, é preciso usar o espaço da escola para uma convivência saudável.

1. A escola é o reflexo privilegiado do todo social é o espelho onde tudo se projeta
A sociedade vivencia o fenômeno social assustador da violência. Ela está presente em todos os espaços sociais, de modo crescente. De acordo com pesquisa da Unesco/BID (2002), devido  à generalização do fenômeno da violência não existem mais grupos sociais protegidos, diferentemente de outros momentos históricos, mesmo que alguns tenham mais condições de buscar proteção institucional e individual. Isso demonstra que atualmente a violência não se restringe a determinados nichos sociais, raciais, econômicos e/ou geográficos. Deste modo, também está presente no ambiente escolar, com intensidade e freqüência preocupantes.
No âmbito da Segurança Pública, mais especificamente na defesa e proteção às crianças e adolescentes, a violência escolar é recorrente, tanto no que diz respeito ao trabalho policial investigativo, quanto em relação aos pedidos de ajuda oriundos das escolas, por meio dos professores, coordenadores e do grupo gestor, na expectativa de que a Polícia dê conta do problema.  Infelizmente a comunidade escolar, principalmente na rede pública de ensino, vive um clima permanente de insegurança e medo, uma vez que é no seu espaço que muitos dos problemas extramuros chegam a seu ápice.
Ao retratar essa realidade, Mirian Abramovay e Maria José Rua (2003) destacam que são muitos os tipos de violência analisados e considerados comuns.  De acordo com as autoras,  na literatura americana  que discorre sobre o tema, o olhar recai sobre gangues, xenofobia e bullying. Já na Europa, os pesquisadores têm se dedicado ao estudo das incivilidades no meio escolar e referem-se a delitos contra objetos e propriedades, intimidades físicas, descuido com o asseio das áreas coletivas e ostentação de símbolos de violência, adoção de atitudes a provocar medos e alguns atos ilícitos como porte e consumo de drogas. ( 2003, p.23)
No Brasil, a partir da década de 1980, Abramovay e Rua destacam que as pesquisas desenvolvidas sobre violência nas escolas tiveram como referência as instituições públicas de educação, associações e, em menor número, instituições privadas. Mesmo sendo incipientes, por focarem na grande maioria situações regionais ou localizadas, os resultados obtidos apontam que, na década de 80, os principais tipos de violência eram ações contra o patrimônio e agressões interpessoais. Na década de 90 aumenta a preocupação com a violência no âmbito escolar com ênfase na presença do narcotráfico, na exclusão social e na presença de gangues. Novamente, percebe-se que o problema da desigualdade social integra as causas da violência escolar no nosso país.
Minayo (2013) diz que os atos de violência podem ser reconhecidos em quatro modalidades de expressão, denominadas de abusos ou maus-tratos. São elas: física, psicológica, sexual e envolvendo negligência, abandono ou privação de cuidados.
O contato do policial em seu trabalho investigativo com crianças, adolescentes e suas famílias explicita as modalidades descritas por Minayo, como conseqüências de problemas anteriores. Assim, durante investigações nos espaços escolares, se chega a mesma conclusão. A violência escolar é, na verdade, um grito de socorro de crianças, adolescentes e jovens e até mesmo de adultos, que clamam por ajuda em razão de não identificarem e/ou não saberem expor suas dores, que na maioria das vezes têm suas raízes em problemas familiares, extramuros.
Em Goiânia, a Polícia Civil, a Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar mantêm programas preventivos destinados às crianças, adolescentes e jovens. O programa Escola Sem Drogas da Polícia Civil tem como público, alunos do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio, são adolescentes entre 12 e 18 anos. Em 2012, com 19 anos de atuação, o programa tinha alcançado mais de 232 mil alunos. Já o programa Anjos da Guarda, criado no ano de 2013, alcança crianças de 4 até 12 anos incompletos. Em pouco mais de um ano, mais de seis mil crianças e alunos foram atendidas.
Qual o objetivo de instituições da Segurança Pública em realizar trabalhos preventivos acerca das drogas com crianças, adolescentes e jovens? A prevenção é uma das saídas para que essas pessoas não se voltem para o mundo marginal, tornando-se, no futuro, alvo de repressão da polícia.  
Nenhuma pesquisa foi realizada sobre esses programas preventivos, que explicite quais são as principais queixas dos educadores, quando reivindicam a presença policial nas escolas, mas policiais, guardas civis e demais educadores envolvidos nos respectivos programas são unânimes em afirmar que é recorrente as solicitações virem acompanhadas de reclamações em relação ao comportamento violento dos alunos.  Geralmente, os relatos dizem respeito a alunos indisciplinados com históricos de envolvimento com drogas e famílias desestruturadas.





A escola é o espaço em que as crianças, adolescentes e jovens vão buscar conhecimentos, sobretudo é o espaço em que se aprende a conviver, baseado nos princípios trazidos da casa, construídos na família. Diante das mudanças sociais que vivemos e da falta de políticas públicas que possibilitem condições dignas de vida às famílias empobrecidas, todo o descontrole e a falta de princípios familiares e valores humanos, também se refletem na escola.
Para Rosa, a falta de políticas públicas agrava tais manifestações.

 “Fatores de desigualdade social como a  miséria, o desemprego, a falta de oportunidades para os jovens e a presença insuficiente ou inadequada do Estado fazem aumentar as manifestações de violência no país. Entretanto, não se trata de um fenômeno circunscrito a fatores estruturais de ordem sócio-econômica. Em razão disso, a violência deve ser entendida no âmbito cultural e psicossocial dos indivíduos, dos grupos e da sociedade. Enquanto Instituição, a escola, sofre os reflexos dos fatores de violência externos que têm gerado conflitos manifestados dentro da sala de aula, comprometendo o aprendizado e as relações interpessoais’’. (2010,p.148)

O fenômeno da violência na escola é o reflexo do que as crianças, adolescentes e jovens vivem em suas famílias. A falta de princípios, de limites, de perspectivas de futuro, o culto ao descartável, a inversão entre do ser pelo ter são elementos que colaboram para que a violência também seja institucionalizada e banalizada no universo escolar. A jornalista Bárbara Reis, em editoral para a publicação Público (2015), traduz bem esta realidade: “ a escola é o reflexo privilegiado do todo social é o espelho onde tudo se projeta, sem hipótese de fuga à realidade por mais cruel e inconveniente que seja essa exposição”.
Para Abramovay e Rua (2002),  todas as causas expostas acima, que provocam a violência nas escolas,  são conhecidas como variáveis endógenas e exógenas,  aspectos relativos tanto ao interior quanto ao exterior das escolas.
Entre os aspectos externos ou variáveis exógenas estão questões de gênero, relações étnico raciais, situações familiares, influência dos meios de comunicação e o espaço social das escolas (o bairro, a sociedade) (p.24).




Já entre os aspectos internos ou variáveis endógenas, considera-se a idade, a série e/ou o nível de escolaridade dos estudantes; as regras e a disciplina dos projetos pedagógicos das escolas, assim como o impacto do sistema de punições; o comportamento dos professores em relação aos alunos e prática educacional em geral.
Abramovay e Rua (2002) acreditam que a tendência sobre os estudos da violência escolar é no sentido de identificar variáveis ou fatores relacionados, pois não é possível ser um único fator, a possível causa ou antecedente que a potencializa. Prefere-se identificar conjuntos ou ambientes favoráveis a violência (p.25).
Por isso, além de enfoques multidimensionais, as autoras acima defendem, a importância de abordagem transdisciplinar, com a contribuição da sociologia, da ciência política, da psicologia, das ciências da educação e da justiça criminal. Elas acreditam ser consenso o reconhecimento da vulnerabilidade negativa da escola, diante de distintos processos contemporâneos, em particular as exclusões sociais, a atitude do poder público para com a educação e a perda de prestígio e de poder aquisitivo pelos professores.  Tal vulnerabilidade sustenta a perda da legitimidade como lugar de produção e transmissão de saberes. De acordo com as autoras,  embora os fatores externos tenham impacto e influência sobre a violência escolar, é preciso tomar cuidado com o fato de que, dentro da própria escola, existem possibilidades de lidar com as diferentes modalidades de violência e de construir culturas alternativas pela paz, adotando estratégias  e capital da própria escola.
As possibilidades da construção de culturas alternativas pela Paz existem e no Brasil muitas delas têm se consolidado, a partir dos mecanismos de defesa dos direitos, previstos na Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã. A universalização da Educação Infantil, que possibilita as crianças de 0 a 5 anos estarem matriculadas em Centros Municipais de Educação;  a lei que torna obrigatório o ensino da história dos




nossos ancestrais indígenas e africanos, possibilitando os alunos a conhecerem sua própria história e colaborando no debate contra a discriminação e o racismo; e a democratização do processo de escolha dos gestores escolares, são ações efetivadas a partir da Carta Magna que possibilitam enxergar uma luz no fim do túnel e acreditar em um espaço escolar mais humano, menos violento.
Carvalho (2002) porém, critica os valores do capitalismo na perspectiva de aquisição da cidadania:
“Que o mal que atrasa o avanço democrático através da cidadania são os reflexos adquiridos pelos valores do capitalismo, sobretudo a cultura consumista, que reivindica uma desigualdade vazia e abstrata em detrimento da desigualdade social de fato. Esse fato agregado à incapacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem na redução da desigualdade solidifica a sociedade brasileira divida conforme a educação, a renda e cor”. (p.229)
Significa dizer que, ainda que haja alguns mecanismos previstos na Constituição na perspectiva de atuar, para que a violência no âmbito escolar seja instinto, ou pelo menos tenha mecanismo para trabalhar tal fenômeno, sem políticas que impliquem na redução da desigualdade social, os conflitos e a violência escolar permanecerão.
 Mesmo que a violência escolar tenha causas diversas, não se pode perder de vista, a necessidade de pensar e construir alternativas para uma cultura de paz nas escolas; tal medida requer um esforço coletivo a começar do poder público, assumindo seu papel em proporcionar  aos estudantes e suas famílias condições dignas de vida e de formação educacional. Desta forma, será possível pensar a redução da desigualdade social, conforme reflete Carvalho (2002) ao entender que a cidadania perpassa pela aquisição de uma vida digna, com moradia, saúde, trabalho e educação. E só então uma nova realidade se refletirá em crianças, adolescentes e jovens mais saudáveis e menos desestruturados, o que certamente refletirá positivamente no ambiente escolar e na superação da violência.



As iniciativas criadas por este Brasil afora vindas de todas as partes, com o objetivo de colaborar na formação desta nova geração, buscando prevenir, e levando a possibilidade de uma vida com qualidade, longe de tudo que lembre e gere sofrimento, injustiça, morte, são bem-vindas e colaboram para um trabalho com maior alcance do poder público.
            Iniciativas como os programas preventivos Anjos da Guarda, Escola sem Drogas, Proerd, podem significar para as famílias, para os educadores, mas fundamentalmente para as crianças, adolescentes e jovens a possibilidade de uma vida sem violência, pautada no respeito às diferenças, no amor entre as pessoas.       
            Finalmente explicitar as várias formas da violência escolar e em que circunstâncias ela ocorre, é um primeiro passo para repensar as instituições sociais, o modelo de sociedade em que as crianças, adolescentes e jovens estão sendo educados ou des-educados, bem como a qualidade dos serviços realizados pelo poder público.  É possível que ao dar o primeiro passo, também dê início a superação do fenômeno da violência escolar.















REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS     

  1. Freire, Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Editora Cortez, 1991.
  2. Reis, Bárbara. Editorial da revista Público, disponível no site www.publico.pt, abril de 2015.
  3. Carvalho, José Murilo. Cidadania no Brasil,  Ed. Saraiva, 2014.  
  4. Revista Ciência e Saúde Coletiva. Publicação de pesquisa de alunos de pós-graduação da UEFS:  O perfil da violência contra crianças e adolescentes, segundo os Conselhos Tutelares. Universidade Estadual de Feira de Santana.  Feira de Santana, 2007.
  5. Klasura Fabiane; Inês Maria. Universidade Federal de Santa Catarina. Artigo científico: O impacto da violência doméstica contra crianças e adolescentes na vida e na aprendizagem. UFSC,  2006.
  6. Dados disponíveis no site: www.todospelaeducacao.org.br/sala-de-imprensa/releases/32460/brasil-tem-936-das-criancas-e-jovens-de-4-a-17-anos-na-escola/, 2013.
  7. Rosa, Maria José Araujo.  Artigo publicado pela Itabaiana: GEPIADDE. Violência no ambiente escolar: Refletindo sobre as conseqüências para o processo ensino. Ano 4, Volume 8, jul-dez de 2010.
  8. Minayo, Maria Cecília de Souza. Relatório - Impactos da Violência na Saúde. Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz mal à saúde , 2013.
  9. Abramovay , Mirian; Ruas, Maria das Graças.Violência na Escola. UNESCO, REDE PITÁGORAS, 2002.





[1]  Adriana Sauthier Accorsi é deputada estadual, delegada de polícia, especialista em segurança pública e ciências criminais
[2]  Geralda Cunha Teixeira Ferraz é assessora de comunicação, especialista em comunicação pública e assessoria de comunicação e escrivã de polícia