O artigo abaixo, foi escrito em parceria com a deputada Adriana Accorsi para o I Colóquio Internacional de Bullying Submerso, promovido pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, no ano de 2015. Uma reflexão sobre este sério problema que está presente no universo das escolas brasileiras.
A Violência no Contexto Escolar
Introdução:
Levantamento feito pelo movimento Todos Pela
Educação (TPE) revelou que, em 2013, o Brasil
tinha 93,6% da população na faixa etária entre 4 e 17 anos cursando a Educação
Básica. Esse é um indicador que aponta
para o alcance do objetivo principal, a inserção de todas as crianças,
adolescentes e jovens na Escola. O dado também expõe
a proporção e a gravidade da violência no ambiente escolar brasileiro.
A experiência no
mundo das delegacias, principalmente na que atua com a proteção da criança e do
adolescente, revela a dura realidade do contexto escolar atual: a violência
dentro da escola. Quais são os motivos do comportamento violento de tantos
estudantes num ambiente educacional?
Partindo do conceito de Paulo Freire, que define escola como um lugar de gente,
de se criar laços, fazer amizades, de conviver, pressupõe-se que antes de ser
um espaço de aprendizagem e trocas de experiências, a escola é um local onde as
relações interpessoais poderiam acontecer de forma harmônica, baseada no diálogo, na
comunicação e na superação de conflitos. Nesta vertente, Paulo Freire faz um
convite para pensar um projeto político pedagógico centrado na construção de
uma escola “séria, competente, justa,
alegre,
curiosa (1991, p. 42), uma escola em que todos tenham condições de aprender e
de criar, de arriscar-se, de perguntar, de crescer”
Por outro
lado, a realidade tem demonstrado que a escola deixou de ser um lugar de convivência e
busca de conhecimento, para ser um espaço de pouco diálogo, da intolerância e do
desrespeito, marcado por atitudes de agressão de todos os modos e de todos os
lados. Tais manifestações, de acordo com o
Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, da OMS, caracterizam-se como atos de
violência (OMS, 2002).
Uso intencional da força física ou do
poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um
grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar
em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.
Em artigo científico Rosa
(2010) explica que a violência nas escolas é vista como uma questão multicausal
e que demanda análises mais aprofundadas.
…
justamente por sua complexidade e multiplicidade de facetas que a
compreensão do fenômeno das violências
nas escolas impõe o desafio de uma ótica transdisciplinar, multidimensional e
pluricausal.
Se o objetivo central
proposto hoje pelo Estado é de que todas as pessoas em idade escolar tenha
acesso às escolas, é preciso estar atento a ao
desafio da superação da violência no contexto escolar, o que certamente afeta
sobremaneira a presença e a convivência saudável das crianças, adolescentes e
jovens neste ambiente e fora dele. Não basta que
todos estejam na escola, é preciso usar o espaço da escola para uma convivência
saudável.
1. A escola é o reflexo privilegiado do todo
social é o espelho onde tudo se projeta
A
sociedade vivencia o fenômeno social assustador da violência. Ela está presente
em todos os espaços sociais, de modo crescente. De acordo com pesquisa da Unesco/BID
(2002), devido à generalização do
fenômeno da violência não existem mais grupos sociais protegidos,
diferentemente de outros momentos históricos, mesmo que alguns tenham mais
condições de buscar proteção institucional e individual. Isso demonstra que
atualmente a violência não se restringe a determinados nichos sociais, raciais,
econômicos e/ou geográficos. Deste modo, também está presente no ambiente
escolar, com intensidade e freqüência preocupantes.
No
âmbito da Segurança Pública, mais especificamente na defesa e proteção às
crianças e adolescentes, a violência escolar é recorrente, tanto no que diz
respeito ao trabalho policial investigativo, quanto em relação aos pedidos de
ajuda oriundos das escolas, por meio dos professores, coordenadores e do grupo
gestor, na expectativa de que a Polícia dê conta do problema. Infelizmente a comunidade
escolar, principalmente na rede pública de ensino, vive um clima permanente de
insegurança e medo, uma vez que é no seu espaço que muitos dos problemas extramuros
chegam a seu ápice.
Ao
retratar essa realidade, Mirian Abramovay e Maria José Rua (2003) destacam que
são muitos os tipos de violência analisados e considerados comuns. De acordo com as autoras, na literatura americana que discorre sobre o tema, o olhar recai sobre
gangues, xenofobia e bullying. Já na Europa, os pesquisadores têm se dedicado ao estudo das incivilidades no
meio escolar e referem-se a delitos contra objetos e propriedades, intimidades
físicas, descuido com o asseio das áreas coletivas e ostentação de símbolos de
violência, adoção de atitudes a provocar medos e alguns atos ilícitos como
porte e consumo de drogas. ( 2003, p.23)
No
Brasil, a partir da década de 1980, Abramovay e Rua
destacam que as pesquisas desenvolvidas sobre violência nas escolas
tiveram como referência as instituições públicas de educação, associações e, em
menor número, instituições privadas. Mesmo sendo incipientes, por focarem na
grande maioria situações regionais ou localizadas, os resultados obtidos
apontam que, na década de 80, os principais tipos de violência eram ações
contra o patrimônio e agressões interpessoais. Na década de 90 aumenta a
preocupação com a violência no âmbito escolar com ênfase na presença do
narcotráfico, na exclusão social e na presença de gangues. Novamente,
percebe-se que o problema da desigualdade social integra
as causas da violência escolar no nosso país.
Minayo
(2013) diz que os atos de violência podem
ser reconhecidos em quatro modalidades de expressão, denominadas de abusos ou
maus-tratos. São elas: física, psicológica, sexual e envolvendo negligência, abandono
ou privação de cuidados.
O
contato do policial em seu trabalho investigativo com crianças, adolescentes e
suas famílias explicita as modalidades descritas por Minayo, como conseqüências
de problemas anteriores. Assim, durante investigações nos espaços escolares, se
chega a mesma conclusão. A violência escolar é, na verdade, um grito de socorro
de crianças, adolescentes e jovens e até mesmo de adultos, que clamam por ajuda
em razão de não identificarem e/ou não saberem expor suas dores, que na maioria
das vezes têm suas raízes em problemas familiares, extramuros.
Em
Goiânia, a Polícia Civil, a Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar
mantêm programas preventivos destinados às crianças, adolescentes e jovens. O
programa Escola Sem Drogas da Polícia Civil tem como público, alunos do Ensino
Fundamental II e do Ensino Médio, são adolescentes entre 12 e 18 anos. Em 2012,
com 19 anos de atuação, o programa tinha alcançado mais de 232 mil alunos. Já o
programa Anjos da Guarda, criado no ano de 2013, alcança crianças de 4 até 12
anos incompletos. Em pouco mais de um ano, mais de seis mil crianças e alunos
foram atendidas.
Qual
o objetivo de instituições da Segurança
Pública em realizar trabalhos preventivos acerca das drogas com crianças,
adolescentes e jovens? A prevenção é uma das saídas para que essas pessoas não se
voltem para o mundo marginal, tornando-se, no futuro, alvo de repressão da
polícia.
Nenhuma
pesquisa foi realizada sobre esses programas preventivos, que explicite quais
são as principais queixas dos educadores, quando reivindicam a presença
policial nas escolas, mas policiais, guardas civis e demais educadores
envolvidos nos respectivos programas são unânimes em afirmar que é recorrente
as solicitações virem acompanhadas de reclamações em relação ao comportamento
violento dos alunos. Geralmente, os
relatos dizem respeito a alunos indisciplinados com históricos de envolvimento
com drogas e famílias desestruturadas.
A
escola é o espaço em que as crianças, adolescentes e jovens vão buscar
conhecimentos, sobretudo é o espaço em que se aprende a conviver, baseado nos
princípios trazidos da casa, construídos na família. Diante das mudanças sociais
que vivemos e da falta de políticas públicas que possibilitem condições dignas
de vida às famílias empobrecidas, todo o descontrole e a falta de princípios familiares
e valores humanos, também se refletem na escola.
Para Rosa, a falta de
políticas públicas agrava tais manifestações.
“Fatores de desigualdade social como a miséria, o desemprego, a falta de
oportunidades para os jovens e a presença insuficiente ou inadequada do Estado
fazem aumentar as manifestações de violência no país. Entretanto, não se trata
de um fenômeno circunscrito a fatores estruturais de ordem sócio-econômica. Em
razão disso, a violência deve ser entendida no âmbito cultural e psicossocial
dos indivíduos, dos grupos e da sociedade. Enquanto Instituição, a escola,
sofre os reflexos dos fatores de violência externos que têm gerado conflitos
manifestados dentro da sala de aula, comprometendo o aprendizado e as relações
interpessoais’’. (2010,p.148)
O
fenômeno da violência na escola é o reflexo do que as crianças, adolescentes e
jovens vivem em suas famílias. A falta de princípios, de limites, de
perspectivas de futuro, o culto ao descartável, a inversão entre do ser pelo
ter são elementos que colaboram para que a violência também seja
institucionalizada e banalizada no universo escolar. A jornalista Bárbara
Reis, em editoral para a publicação Público (2015),
traduz bem esta realidade: “ a escola é o reflexo
privilegiado do todo social é o espelho onde tudo se projeta, sem hipótese de
fuga à realidade por mais cruel e inconveniente que seja essa exposição”.
Para Abramovay
e Rua (2002), todas as causas expostas acima, que provocam a
violência nas escolas, são conhecidas
como variáveis endógenas e exógenas, aspectos
relativos tanto ao interior quanto ao exterior das escolas.
Entre os
aspectos externos ou variáveis exógenas estão questões de gênero, relações
étnico raciais, situações familiares, influência dos meios de comunicação e o
espaço social das escolas (o bairro, a sociedade) (p.24).
Já
entre os aspectos internos ou variáveis endógenas, considera-se a idade, a série
e/ou o nível de escolaridade dos estudantes; as regras e a disciplina dos
projetos pedagógicos das escolas, assim como o impacto do sistema de punições;
o comportamento dos professores em relação aos alunos e prática educacional em
geral.
Abramovay
e Rua (2002) acreditam que a tendência sobre os estudos da violência escolar é
no sentido de identificar variáveis ou fatores relacionados, pois não é
possível ser um único fator, a possível causa ou antecedente que a potencializa.
Prefere-se identificar conjuntos ou ambientes favoráveis a violência (p.25).
Por
isso, além de enfoques multidimensionais, as autoras acima defendem, a importância
de abordagem transdisciplinar, com a contribuição da sociologia, da ciência
política, da psicologia, das ciências da educação e da justiça criminal. Elas acreditam ser consenso o reconhecimento da
vulnerabilidade negativa da escola, diante de distintos processos contemporâneos,
em particular as exclusões sociais, a atitude do poder público para com a educação
e a perda de prestígio e de poder aquisitivo pelos professores. Tal vulnerabilidade sustenta a perda da
legitimidade como lugar de produção e transmissão de saberes. De acordo com as
autoras, embora os fatores externos
tenham impacto e influência sobre a violência escolar, é preciso tomar cuidado
com o fato de que, dentro da própria escola, existem possibilidades de lidar
com as diferentes modalidades de violência e de construir culturas alternativas
pela paz, adotando estratégias e capital
da própria escola.
As
possibilidades da construção de culturas alternativas pela Paz existem e no
Brasil muitas delas têm se consolidado, a partir dos mecanismos de defesa dos
direitos, previstos na Constituição Federal de 1988, conhecida como
Constituição Cidadã. A universalização da Educação Infantil, que possibilita as
crianças de 0 a 5 anos estarem matriculadas em Centros Municipais de Educação; a lei que torna obrigatório o ensino da
história dos
nossos ancestrais
indígenas e africanos, possibilitando os alunos a conhecerem sua própria
história e colaborando no debate contra a discriminação e o racismo; e a
democratização do processo de escolha dos gestores escolares, são ações
efetivadas a partir da Carta Magna que possibilitam enxergar uma luz no fim do
túnel e acreditar em um espaço escolar mais humano, menos violento.
Carvalho
(2002) porém, critica os valores do capitalismo na perspectiva de aquisição da
cidadania:
“Que
o mal que atrasa o avanço democrático através da cidadania são os reflexos
adquiridos pelos valores do capitalismo, sobretudo a cultura consumista, que
reivindica uma desigualdade vazia e abstrata em detrimento da desigualdade
social de fato. Esse fato agregado à incapacidade do sistema representativo de
produzir resultados que impliquem na redução da desigualdade solidifica a
sociedade brasileira divida conforme a educação, a renda e cor”. (p.229)
Significa
dizer que, ainda que haja alguns mecanismos previstos na Constituição na
perspectiva de atuar, para que a violência no âmbito escolar seja instinto, ou
pelo menos tenha mecanismo para trabalhar tal fenômeno, sem políticas que
impliquem na redução da desigualdade social, os conflitos e a violência escolar
permanecerão.
Mesmo que a violência escolar tenha causas
diversas, não se pode perder de vista, a necessidade de pensar e construir
alternativas para uma cultura de paz nas escolas; tal medida requer um esforço
coletivo a começar do poder público, assumindo seu papel em proporcionar aos estudantes e suas famílias condições
dignas de vida e de formação educacional. Desta forma, será possível pensar a
redução da desigualdade social, conforme reflete Carvalho (2002) ao entender
que a cidadania perpassa pela aquisição de uma vida digna, com moradia, saúde,
trabalho e educação. E só então uma nova realidade se refletirá em crianças,
adolescentes e jovens mais saudáveis e menos desestruturados, o que certamente
refletirá positivamente no ambiente escolar e na superação da violência.
As
iniciativas criadas por este Brasil afora vindas de todas as partes, com o
objetivo de colaborar na formação desta nova geração, buscando prevenir, e
levando a possibilidade de uma vida com qualidade, longe de tudo que lembre e
gere sofrimento, injustiça, morte, são bem-vindas e colaboram para um trabalho
com maior alcance do poder público.
Iniciativas como os programas
preventivos Anjos da Guarda, Escola sem Drogas, Proerd, podem significar para
as famílias, para os educadores, mas fundamentalmente para as crianças,
adolescentes e jovens a possibilidade de uma vida sem violência, pautada no
respeito às diferenças, no amor entre as pessoas.
Finalmente explicitar as várias
formas da violência escolar e em que circunstâncias ela ocorre, é um primeiro
passo para repensar as instituições sociais, o modelo de sociedade em que as
crianças, adolescentes e jovens estão sendo educados ou des-educados, bem como
a qualidade dos serviços realizados pelo poder público. É possível que ao dar o primeiro passo,
também dê início a superação do fenômeno da violência escolar.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
- Freire,
Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Editora Cortez, 1991.
- Reis,
Bárbara. Editorial da revista Público, disponível no site www.publico.pt, abril de 2015.
- Carvalho,
José Murilo. Cidadania no Brasil, Ed. Saraiva, 2014.
- Revista
Ciência e Saúde Coletiva. Publicação de pesquisa de alunos de
pós-graduação da UEFS: O perfil da
violência contra crianças e adolescentes, segundo os Conselhos Tutelares. Universidade
Estadual de Feira de Santana. Feira
de Santana, 2007.
- Klasura
Fabiane; Inês Maria. Universidade Federal de Santa Catarina. Artigo
científico: O impacto da violência doméstica contra crianças e
adolescentes na vida e na aprendizagem. UFSC, 2006.
- Dados
disponíveis no site: www.todospelaeducacao.org.br/sala-de-imprensa/releases/32460/brasil-tem-936-das-criancas-e-jovens-de-4-a-17-anos-na-escola/,
2013.
- Rosa,
Maria José Araujo. Artigo publicado
pela Itabaiana: GEPIADDE. Violência no ambiente escolar: Refletindo sobre
as conseqüências para o processo ensino. Ano 4, Volume 8, jul-dez de 2010.
- Minayo,
Maria Cecília de Souza. Relatório - Impactos da Violência na Saúde. Conceitos,
teorias e tipologias de violência: a violência faz mal à saúde , 2013.
- Abramovay
, Mirian; Ruas, Maria das Graças.Violência na Escola. UNESCO, REDE
PITÁGORAS, 2002.